Uma decisão irrevogável

Rafael Presto
3 min readOct 5, 2020

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[conto]

Pintura de Sahana Ramakrishnan

Ele havia decidido morrer. Não era essa uma certeza pautada pelo desespero, tristeza profunda, tragédia de alma, nada disso: atravessava seu coração uma paz serena, uma harmonia obscena, diante dos pensamentos de findar com a própria vida. Estava certo, era essa uma decisão irrevogável. Faltava agora o esforço e sabedoria de convencer as pessoas que amava da sua decisão, um convencimento infalível que acabasse com qualquer possibilidade de culpa, qualquer chance de depositar uma sombra permanente no brilho da vida das suas e dos seus.

Afinal, não era disso que se tratava. Para ele, tudo era muito óbvio: cansara-se do esforço de existir, da rude tarefa de permanecer nesse mundo. Não que lhe causasse muitos pesares, o mundo, muito pelo contrário. Funcionário público aposentado, as filhas criadas e bem-sucedidas, netos gordos, um casamento amoroso cercado de companheirismo, um cotidiano de fazer frente a mais melodramática das propagandas de margarina. Tudo isso somado a sua história de superação, uma infância de miséria e todas as dificuldades que se empilham em narrativas meritórias desse tipo. Sinceramente, isso não lhe importava nem um pouco. Estava saciado, como alguém que se entupiu de comida até a garganta e têm o estômago em greve, tendo de carregar permanentemente toneladas de comida apodrecendo dentro de si. Nada lhe faria mudar de opinião.

Pôs-se então ao projeto sistemático de convencimento daquelas e daqueles que amava, a fim de preparar as pessoas próximas para sua partida consciente. Alguns encontros foram mais difíceis, como aquela conversa com a filha mais velha, no café onde receberá a notícia da vinda de sua neta — lágrimas e xícaras quebradas. Outros casuais, como a despedida do bar com seu melhor amigo, iniciada com piadas e drinks e encerrada entre lágrimas alcoolizadas, uma dupla de bêbados de um boteco qualquer. Certos momentos foram cercados de compreensão e poesia, como o adeus a filha mais nova, naquele parque de diversões que iam quando ela era ainda uma criança, caminhando inocente de aparelhos e óculos de armação rosa. Algumas situações foram bem inocentes, como a despedida da sua netinha enquanto passeavam com o cachorro, dizendo que ia sentir muita falta do vovô quando ele fosse embora. Certos encontros foram profundos e indizíveis, como o silêncio no quarto do motel depois da melhor transa de todas, ele e sua esposa, a mulher da sua vida. Transaram como um último gesto de adeus. Nunca mais falaram sobre o assunto, até o dia do acontecimento derradeiro.

Ele fez tudo com muita elegância, como era de se esperar de alguém como ele. Uma despedida sóbria, o excesso exato de remédios numa pequena pousada de frente para o mar. Dizem que morreu sentado, olhando o sol se pôr sob o manto das ondas, infinito.

Mas isso são só especulações. O que se sabe realmente é que a família se recusou a fazer qualquer tipo de ritual, peremptoriamente. Nenhum funeral, reza, celebração, espalhar de cinzas, nada do tipo. Muita gente estranhou. Mas ele por certo concordaria, sorridente, se ainda pudesse: não se fazia necessária mais nenhuma despedida.

14/04/19

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Rafael Presto

Poeta de insólitos conflitos, amores aflitos e sonhos de revolução. Escritor, dramaturgo e roteirista — operário das letras cultivadas com afeto e despropósito.