O curioso caso do bebê assintomático e suas tias cloroquinas

Rafael Presto
3 min readOct 1, 2020

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[conto]

Os dois formavam um casal bastante razoável, e enfrentaram com suficiente dignidade o nascimento do primeiro filho em meio a pandemia. Razoáveis que eram, tomaram todas as medidas possíveis no equilíbrio bastante delicado entre tocar a vida, pagar as contas, criar o bebê e enfrentar a peste.

Ninguém pode dizer com certeza como o vírus chegou naquela cuidadosa família — se num descuido ao apanhar uma compra não desinfetada, numa ida corriqueira ao pediatra, naquele passeio na pracinha com todo cuidado — o fato é que o coronavírus, contrariando as estatísticas, infectou justamente o bebezinho recém chegado. E o pior: o neném ficou completamente assintomático, sem nenhum sintoma visível da contaminação. Uma verdadeira bomba química trajando fraldas e macacõezinhos fofos de bichinhos.

Foi nesse contexto que aconteceu todo o mórbido quiproquó.

Acontece que o casal razoável, além de um primeiro filho mais ou menos planejado, também tinha, em graus perigosamente próximos de parentesco, uma constelação invejável de tias bolsonaristas, dessas de manual: gente de Deus, profissão rancor, com especialidade em julgar vida alheia, formadas na academia do WhatsApp e ungidas com um conjunto nada desprezível de preconceitos de todas as matizes — tipo de tia que se tornou tragicamente comum nesses tempos exóticos.

E, apesar dos apelos sensatos dos jovens para que as tias não viessem conhecer o bebezinho pessoalmente, dado o risco de infecção nelas, senhorinhas em evidente estado de grupo de risco, não houve possibilidade de dissuadi-las quando apareceram de surpresa num almoço de domingo. Atacaram sem avisar, tal qual uma tropa organizada da liga ultra conservadora da terceira idade, portanto maionese, salada de repolho, tortas de frango e refrigerante quente — afinal as tias não bebiam cerveja, evangélicas que eram.

Pudesse reagir aquela invasão violenta o recém-nascido teria feito, mas seu pouco mais de um mês de vida não o permitiu, coitado. O bebê ficou então refém dessa espécie de batismo familiar traumático, feito de chupadas, babadas, beliscões, torções de bochechas, beijos lambuzados, em suma, todo esse repertório comum de afetos sádicos que saem dos manuais de tias desse tipo. Mal sabiam essas senhorinhas — ninguém sabia, nem mesmo o casal de pais razoáveis, não haveria como saber — que aquele bebezinho gorduchinho cruelmente esmagado estava, em verdade, na condição de um corona baby.

A coisa toda foi muito rápida, não houve tempo de elaborar como tudo aconteceu. Em menos de onze dias todas as quatro tias vieram a óbito, numa escalada sincronizada de mortes, uma por dia. Aparentemente, não se tratava de uma gripezinha.

Foi dessa maneira, sem que ninguém nunca sequer suspeitasse, que aquele bebê de faces rosadas e cabelo espetado, filho de um casal bastante razoável, terminou por dizimar suas tias-avós bolsonaristas com a peste, na sua inocência silenciosa de vida que começa.

Dizem que o bebezinho, que até então não havia expressado nenhum sentimento de maneira consciente, sorriu pela primeira vez no enterro coletivo das tias-avós, coincidência ou não. Mas isso, bem, isso são só boatarias maldosas.

30/09/2020

Sunflower Fiel Gas Mask — Banksy

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Rafael Presto

Poeta de insólitos conflitos, amores aflitos e sonhos de revolução. Escritor, dramaturgo e roteirista — operário das letras cultivadas com afeto e despropósito.