O Último Orelhão do Mundo

Rafael Presto
3 min readJan 27, 2022

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Alô… Alô? Desculpa ligar a cobrar. Para ser sincero, eu nem consigo acreditar que esse tipo de ligação ainda funciona. Sim, sou eu… Não desliga não! Você não tinha mesmo como reconhecer o número, estou ligando de um orelhão. É, um orelhão! Li em algum lugar que era o último orelhão do mundo, então eu vim aqui, só para lembrar como era. Isso, o último orelhão do mundo, dá pra acreditar? Ah, fica aqui em um lugar sem nada de muito especial, em um parque no centro da cidade. Tá meio detonado, cheio daqueles adesivinhos de garota de programa, sabe? Até isso continua igual… Por favor, não desliga! Eu não tinha ideia de pra quem ligar, e acabou que o primeiro número que me veio na cabeça foi o seu. Para ser sincero, não sei mais nenhum telefone de cor… Só lembrava do seu. Mas lembrava como fazer uma ligação a cobrar! Engraçado, né? Algumas coisas a gente nunca esquece… Isso, uns doze anos. Acho que faz sim uns doze anos que a gente não se fala. Depois que a gente terminou, nunca mais… Essa é outra coisa que eu fico muito impressionado: como uma pessoa é tão importante na vida da gente, um amor maluco que ocupa tudo, faz perder a respiração, o sono, e quando acaba, acaba. Doze anos é tempo pra caramba… Sem dúvida: se alguém tem culpa desse afastamento com certeza sou eu, sempre fui meio desajeitado com o final das coisas. Eu custo a aceitar essa verdade da vida, de que as coisas passam, as pessoas passam, igualzinho esse orelhão aqui que, pra ser sincero, não parece mesmo ter muita utilidade hoje em dia. Não, eu não estou maluco! A gente tem a mesma idade, não tem? Então você também pegou a época de ouro dos orelhões, não pegou? Lembra como era? Lembra que a ficha caia para avisar que o tempo da conversa estava acabando? Aí dava aquela ansiedade de colocar outra ficha, aí por conta da pressa era impossível acertar o buraquinho e, no fim das contas, a ligação caia, e você ali, com cara de idiota, com a ficha na mão. Tinha alguns lugares que fazia fila nos orelhões, todo mundo querendo fazer seu telefonema, esperando a cabine ficar livre. As pessoas ficavam bem impacientes se a conversa demorava demais… Aí veio o cartão telefônico, que nunca funcionava direito se ficava guardado por muito tempo, então não valia a pena comprar aqueles cartões com dezenas de minutos. Desculpa, não sei direito porque estou falando disso… Não, não desliga não! Por favor… É meio loucura isso tudo, eu sei, mas é que falar com você assim, ouvir sua voz de um orelhão, é como se o tempo não tivesse passado tão depressa, sei lá… Não, isso não é uma cantada barata, te juro! É só que… Você lembra como era isso? Antes desse gosto amargo, essa sensação de beco sem saída, de solidão… Não, não acho que eu preciso de um psicólogo, não é nada disso! Foi só que eu li essa notícia do último orelhão do mundo e fui tomado por esse ímpeto maluco de telefonar para alguém, mas quando peguei o telefone na mão me dei conta que eu já não telefono pra mais ninguém. Também isso saiu de moda, hoje em dia é quase ofensivo ligar para uma pessoa sem avisar. Juro que compreendo sua raiva, você se sentir invadida, interrompida por uma ligação sem aviso, o embaraço de ter que falar com alguém assim, de surpresa. Mas se você puder falar comigo só mais um instante, gastar mais alguns minutos comigo, só pra gente não deixar passar assim… O tempo de uma ficha, como se fosse o tempo de uma ficha! Estamos falando do último orelhão do mundo, pô! Você ainda consegue lembrar essas memórias antigas, desse tempo em que a gente fazia as coisas sem esperar nada em troca, quando a gente era inconsequente e feliz, sem ter muita expectativa no dia de amanhã? Às vezes eu tenho tanta saudade da minha felicidade… Desculpa, tem razão. Claro, tenho certeza de que você deve estar muito ocupada. Desculpa te ligar assim, do nada, no meio do dia, interrompendo sua rotina. Pelo menos nos despedimos do último orelhão do mundo. “Inusitado” é uma ótima palavra. Te cuida também. Sim, a gente se encontra por aí. Fica bem. Um beijo… Tchau.

26/01/2022

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Rafael Presto

Poeta de insólitos conflitos, amores aflitos e sonhos de revolução. Escritor, dramaturgo e roteirista — operário das letras cultivadas com afeto e despropósito.