Homem não chora

Rafael Presto
2 min readOct 12, 2020

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[crônica-poesia]

Às vezes eu fico assombrado com o tamanho de violência que somos obrigados a cometer com nós mesmos, nós, homens criados no interior de uma cultura dos homens. Hoje um conhecido contou do falecimento da avó dele e, de toda a história, o que mais me marcou foi o fato dele ter de acordar no meio da madrugada para chorar escondido no sofá. Porque você tá ligado, né? Homem não chora. Ele contava toda a história muito emocionado, a avó parecia realmente importante para ele, mas o sentimento era um descuido, uma coisa que sem querer escapava dentro do esforço de não mostrar fragilidade, não demonstrar fraqueza em hipótese nenhuma. Porque é assim que um homem deve ser: forte, inabalável, um porto seguro, essa estranha cobrança silenciosa que organiza os espíritos masculinos comuns. E esse amigo contou com voz baixa, com muita vergonha, depois de alguma insistência, que estava muito triste, não conseguia parar de pensar na avó (que ele mesmo tentou reanimar com massagem cardíaca), seguia muito mexido. Mas logo desconversou, voltando para seu serviço, reassumindo a normalidade e a assertividade para fazer a vida, essa obrigação de alma que todo macho deve portar acima de tudo. Todos sofrem no arranjo absurdo do mundo atual, sem exceções. E é comum que passe despercebido todo esse repertório naturalizado de agressões que fazemos com nós mesmos, os famigerados homens, na cotidiana violência estrutural que reproduzimos nesse arranjo de sociedade onde todos sangram, tragicamente, alguns mais, outros menos. A distância, a brutalidade, a aspereza, são todas marcas de alma que um homem deve portar diante do silencioso tribunal do cotidiano que rege nossas ações, conscientes ou não. A determinação fria, rude e indiferente de quem tem disposição de fazer o que precisa ser feito, seja lá o que for. Um tipo esquisito de honra e compromisso com a indelicadeza, a insensibilidade, a não alteridade: um pacto de violência, mão firme e alma farpada, apoiado em certa ética de guerra antiquada. Uma imensa tragédia que impede o sublime do chorar, a grandiosidade do estar frágil e, sobretudo, a dádiva da alteridade radical, da entrega apaixonada. Não existe afeto no mundo dos homens. O amor e o cuidado são atos de insubordinação.

11/10/2020

Study for a Head (1952) — Francis Bacon

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Rafael Presto

Poeta de insólitos conflitos, amores aflitos e sonhos de revolução. Escritor, dramaturgo e roteirista — operário das letras cultivadas com afeto e despropósito.