Carta de Despedida para o Gato Nemo

Rafael Presto
3 min readJan 13, 2021

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Nessa madrugada foi-se o Nemo, companheiro inabalável, escudeiro felino, o melhor gato que a vida podia me oferecer. É impossível costurar com palavras o rombo no peito. O gatão fez sua passagem, deixando na casa um vazio impossível. Nemo esteve ao meu lado em cada passo da minha vida de adulto, 14 quase 15 anos compartilhando comigo cada transformação. Era literalmente um gatão, grande e ativo, preto e branco (corintiano), muito carinhoso.

Existe esse mito de que o gato se apega mais a casa, coisa que com o Nemo pareceria absurdo, já que mudamos de casa tantas vezes. Tínhamos um amor profundo, um laço silencioso, afetivo e presente. Éramos duas vidinhas, o Nemo e eu, lado a lado, acolhendo cada passinho, cada mudança no amadurecimento lento e inevitável da vida.

Por começar suas peripécias de filhote numa movimentada república de jovens artistas boêmios — essa gente de teatro — Nemo foi sempre um gato muito disposto a sociabilidade, amoroso e brincalhão. Adorava festas, circulando pelas diferentes casas que vivemos, transitando no meio da muvuca, conhecendo colos, colhendo carícias e assaltando petiscos desprevenidos. Nemo dominava as mumunhas de existir.

De personalidade forte, aprontava ardilmente para depois ficar ressentido de levar uma bronca. Escolhia sempre os alérgicos para se esfregar. Marcava presença em toda reunião, ensaio, conspiração, festa, intimidade — lá estava o Nemo, no colo ou na mochila de alguém. Colecionava relações amorosas e singulares com humanos de toda espécie.

Era mesmo um gato muito inteligente. Tinha uma memória notável: se você um dia conviveu com o Nemo, ele se lembraria de você se por acaso o visitasse — era uma coisa bonita de ver. Respondia pelo nome, bastando chama-lo em voz alta pra lá vir o gatão, miando com o rabo levantado, brincalhão sedutor. Era acolhedor de um jeito intenso. Se ouvia alguém gritando, já lá ia o Nemo correndo acudir, tentando socorrer os sofrimentos do mundo. Assim era, sempre atento a qualquer mudança nos sentimentos dos seus humanos de estimação. Em momentos de tristeza, oportunamente vinha o Nemo descansar e dormir no colo, ronronando com seu profundo acolhimento.

Nemo cuidou da gestação de Tiago passo a passo, descansando em cima da barriga de Nina nos momentos de dor e alegria, embalando as cólicas e sentido os chutes do bebê. Tenho certeza que ficou muito feliz de conhecer o filhote dos seus humanos de estimação. Era já tão acolhedor que quando Tiago agarrava os pelos do Nemo como se fosse um brinquedo, Nemo nada fazia, senão esperar com aquele jeito ranzinza paciente que só os gatos têm. Quando o Tiago ficava pela casa, lá ficava o Nemo, parado, vigiando do lado do bebê, mostrando sua prontidão em cuidar de todos da casa.

Quanta falta você vai deixar… Como é que eu vou seguir escrevendo? A verdade é que, em segredo, era Nemo quem assoprava nos meus ouvidos as palavras, a mim cabendo o papel de escrivão apaixonado das suas narrativas e versos felinos.

Fica um vazio difícil de nomear, nessa fresta entre a total importância e o mais simples cotidiano que os bichos de estimação ocupam, quando amados intensamente. E isso o Nemo foi, um gatão muito amado por todas e todos, para quem, em tempos absurdos como esses, a espécie humana era fonte de afeto e carinho acima de tudo.

Então, se você teve essa alegria de, como eu, conviver com esse gato incrível, faz uma preza, dedica um instantinho lembrando do Nemo quando estiver de boa. Saiba que o Nemo lembraria de você também.

Vai em paz, Nemo amado. Que sorte imensa de ter tido sua companhia até aqui meu gatão, imprescindível. Desse seu humano, que pra sempre vai te contar e lembrar com amor e carinho. E muita saudade.

Texto escrito na madrugada de 11 para 12/01/2021.

Na foto, o Nemo em uma das caixas de papelão que amava.

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Rafael Presto

Poeta de insólitos conflitos, amores aflitos e sonhos de revolução. Escritor, dramaturgo e roteirista — operário das letras cultivadas com afeto e despropósito.