34 na pandemia

Rafael Presto
2 min readOct 27, 2020

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[crônica-poesia]

Fazer aniversário nunca me foi muito custoso, não tenho nem nunca tive medo de envelhecer. O que tenho é espanto, um assombro profundo com as metamorfoses do tempo, que passa rápido e devagar de maneira igual, lembrando como somos um suspiro infinito diante do fluxo da vida, uma poeirinha escandalosa, sonhadora e efêmera. Reconheço com orgulho as marcas que me trouxeram até aqui. Comemoro sinceramente cada linha de expressão, fio de cabelo branco, até mesmo as dores nas costas e as olheiras profundas, todas essas marcas de fazer a vida, conquistadas na base de muito trabalho e afeto. Como se fossem pequenos tesouros do tempo, sabedorias profundas e corriqueiras que só chegam com a idade, o repertório de mundo e saberes da velhice. O tempo traz essa mistura de serenidade e impaciência diante da morte, esse mistério que acompanha a caminhada de toda gente. Mas é tudo muito maluco, porque ao mesmo tempo me sinto um enganador do tempo, um charlatão dos aniversários, uma incorrigível criança arteira, cada dia mais disposto a traquinagens inconsequentes, reflexões inocentes e assombros infantis. Como um menino perdido que se espanta ao perceber que deixou a terra do nunca faz tempo, meio sem querer, velejando por aí, seguido por crocodilos e relógios. Às vezes eu me sinto em completo desarranjo com minha vida de adulto, minhas obrigações de gente crescida — com trabalhos, boletos, dietas e compromissos –, como se não coubesse em mim uma coisa tão séria, como se no fundo eu enganasse todo mundo, escondido por detrás de olhos de menino que nunca aprenderam a envelhecer. Acho que é por isso que de vez em quando sou tão imaturo, decididamente infantil. E é nesse pêndulo entre um velho poeta ranzinza que espera a morte e uma criança impaciente que acaba de fazer uma grande besteira que eu encaro o espelho na manhã dos meus trinta e quatro anos sob o sol dessa terra. Na sequência apanho meu filho recém chegado para dançar com ele mais uma manhã que nasce. Que puta sorte que eu dei, fala a verdade? Viva a poesia! Um brinde a vida, ao amor do nosso bando, ao acalanto do tempo! E fogo nos fascistas! Que a vida é uma, uma coisa linda, feita de sonho, revolta e alegria! A morte que me espere: sinceramente, até outro dia.

23/10/2020

Eu, minha avó e meu filho na modesta comemoração possível nessa pandemia.

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Rafael Presto

Poeta de insólitos conflitos, amores aflitos e sonhos de revolução. Escritor, dramaturgo e roteirista — operário das letras cultivadas com afeto e despropósito.